segunda-feira, 14 de junho de 2010

O Lixo

Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.

-Bom dia...
-Bom dia.
-A senhora é do 610.
-E o senhor do 612
-É. Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...
-Pois é...
-Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...
-O meu quê?
-O seu lixo.
-Ah...
-Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...
-Na verdade sou só eu.
-Mmmm.
-Notei também que o senhor usa muito comida em lata.
-É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...
-Entendo.
-A senhora também...
-Me chame de você.
-Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...
-É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha, às vezes sobra...
-A senhora... Você não tem família?
-Tenho, mas não aqui.
-No Espírito Santo.
-Como é que você sabe?
-Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
-É. Mamãe escreve todas as semanas.
-Ela é professora?
-Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?
-Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.
-O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
-Pois é...
-No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.
-É.
-Más notícias?
-Meu pai. Morreu.
-Sinto muito.
-Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.
-Foi por isso que você recomeçou a fumar?
-Como é que você sabe?
-De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.
-É verdade. Mas consegui parar outra vez.
-Eu, graças a Deus, nunca fumei.
-Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...
-Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.
-Você brigou com o namorado, certo?
-Isso você também descobriu no lixo?
-Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.
-É, chorei bastante, mas já passou.
-Mas hoje ainda tem uns lencinhos...
-É que eu estou com um pouco de coriza.
-Ah.
-Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
-É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
-Namorada?
-Não.
-Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.
-Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
-Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.
-Você já está analisando o meu lixo!
-Não posso negar que o seu lixo me interessou.
-Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.
-Não! Você viu meus poemas?
-Vi e gostei muito.
-Mas são muito ruins!
-Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.
-Se eu soubesse que você ia ler...
-Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
-Acho que não. Lixo é domínio público.
-Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
-Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...
-Ontem, no seu lixo...
-O quê?
-Me enganei, ou eram cascas de camarão?
-Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.
-Eu adoro camarão.
-Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...
-Jantar juntos?
-É.
-Não quero dar trabalho.
-Trabalho nenhum.
-Vai sujar a sua cozinha?
-Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.
-No seu lixo ou no meu?

Luis Fernando Veríssimo

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